Ensinamentos indígenas sobre mudanças climáticas
Sinéia Wapichana concedeu uma entrevista para a OPAN durante a Conferência Brasileira de Mudança do Clima em Recife. Nela, sistematiza cinco ensinamentos do Conselho Indígena de Roraima no trabalho com o tema de mudanças climáticas. Para Sinéia, os indígenas da Amazônia brasileira tem um grande acúmulo nesta discussão e é o momento de incidir em outras regiões, como no nordeste, que também sofre as consequências das alterações climáticas.
Conheça a seguir as reflexões Sinéia Wapichana. A entrevista e a edição são de Lívia Alcântara.
#5 Ensinamentos indígenas sobre mudanças climáticas
#1 A percepção dos povos indígenas
O número um que eu elencaria na questão das mudanças do clima é a percepção dos povos indígenas no momento em que eles estão vivendo os impactos nas comunidades. A partir daí a gente vai enumerar muitas coisas que estamos fazendo, como o trabalho com água, mulheres e jovens. Porque as mulheres indígenas têm mais contato com a água. Elas estão ali fazendo a comida, cuidado dos filhos, olhando a questão das plantas.
A outra coisa que a gente está trabalhando é como a mudança climática tem mexido muito com os rios. Quando a gente fala de estoque de alimentos, a gente pensa não só no que está na roça, mas também em animais, pássaros e peixes. E em um destes estudos saiu que houve aquecimento de um igarapé na Terra Indígena Serra da Lua e vários dos peixes regionais foram embora.
Essa percepção nos traz a cada dia um alerta de trabalhar a questão da água, da agricultura, dos bancos de sementes que a gente tem iniciado em Roraima. A gente precisa ter essas sementes resistentes ao inverno e ao verão.
#2 Mapeamento Climático
Outra coisa que a gente tem trabalhado muito é para que as comunidades possam se organizar para os mapeamentos climáticos a partir de coleta de dados dos povos indígenas. Aí entra essa questão tecnológica para a gente assessorar as comunidades indígenas neste enfrentamento das mudanças climáticas.
A percepção não precisa de tecnologia, mas o enfrentamento das mudanças climáticas, junto com o conhecimento tradicional, nos ajuda a ser mais fortes, mais resilientes àquilo que vai acontecer.
- Conhecimento tradicional: brigadas e planos de vida
Como ferramenta no combate às mudanças do clima a gente tem as brigadas e os planos de vida. Em Roraima nós temos brigadas voluntárias, contratadas pelo Ibama e totalmente indígenas, fazendo o controle do fogo nas terras indígenas do estado. Estamos trabalhando essas brigadas de forma integrada, unindo conhecimentos técnicos e tradicionais, aqueles que já temos, já que o uso do fogo é da cultura indígena. O controle das queimadas é muito importante na questão das emissões.
Os planos de vida* que construímos inclui a percepção sobre as mudanças do clima que já estão acontecendo e toda a vivência da comunidade em vários aspectos: sociais, culturais, a plantação… Temos o plano de vida como um termômetro. Quando a gente começa a trabalhar o manejo sustentável dos recursos naturais, a gente vê que muitos destes recursos, por conta das mudanças climáticas, já sofreram algum tipo de ameaça, não só as pessoas, mas também pássaros e plantas têm sido afetados em função de algum descontrole da questão climática. Principalmente quando vai plantar… O ciclo de plantação do inverno e do verão já não são mais os mesmos.
- Tecnologia
A gente tem avançado com o mapeamento, usando o programa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM): “Alerta Clima Indígena”. Com o aplicativo que a gente tem no celular, conseguimos mapear focos de calor, cheias, garimpo, mandar alerta de queimadas, produzir mapas com focos de calor e mandar para as comunidades onde está acontecendo mais queimadas. É um aplicativo de celular que funciona off-line para coleta de dados e quando conecta à internet, ele consegue transmitir dados e atualizar.
Hoje a gente já pode receber lideranças na nossa organização ou quando a gente vai para a área e dizer: ‘olha aí na minha terra indígena quantos focos de calor tem do dia tal ao dia tal’. Isso é muito importante, em muitos lugares, no verão, está queimando muito.
Em Roraima a gente tem muitas montanhas e isso pode, às vezes, ser contabilizado como queimada, mas são rochas aquecidas. Com este trabalho a gente consegue ver in loco. Quando vemos um foco de calor muito grande naquela região, contactamos o agente ambiental que está lá na região das serras para ver logo se aquilo é queimada ou rocha aquecida. A gente consegue fazer isso através do mapeamento no Sistema Geográfico de Informações do CIR.
#3 Informar as comunidades indígenas
A outra coisa importante é tentar informar as comunidades que estas mudanças no clima estão ocorrendo e não são por acaso, elas são mudanças globais.
Além da mudança climática global a gente tem uma mudança climática local com a chegada de alguns empreendimentos grandes, como a soja em Roraima e a retirada da vegetação do lavrado. Muitas pessoas acham que aquela biodiversidade que existe ali não tem muito valor, mas é uma vegetação baixa que acumula muito carbono e com algumas plantas resistentes ao fogo. Quando ela é toda retirada para plantar soja, ela traz uma grande preocupação, porque isso impacta nas terras indígenas, principalmente em pragas, nas roças que os indígenas plantam sem agrotóxicos, impacta nesta biodiversidade que se tem no lavrado, no mirixi, que se usa muito para a lenha. A gente vê toda a paisagem mudando com essa chegada da soja.
Assim temos um aquecimento global e local, porque quando se retira esta vegetação aquece mais o lugar, quando se retira esta vegetação da beira dos igarapés, eles começam a secar. A mata ciliar é como uma pestana dos nossos olhos, quando retirada, ela começa a prejudicar aquele curso de água.
Numa dessas reuniões, eu conversando com o Paulo Moutinho, que é do IPAM, grande especialista de mudanças climáticas, eu fiz uma pergunta para ele: existe mudança climática local e global? Eu tenho essa dúvida porque eu sei que a mudança global vem com o aumento do nível de aquecimento, mas tem a local, em determinado lugar a gente pode ter um aquecimento maior com a retirada das árvores. E ele me respondeu que cientificamente isso acontece. A gente já tinha percebido isso e só confirmamos.
Por isso estamos desenvolvendo cartilhas sobre as queimadas, cartilhas sobre a água… Não precisaria falar isso para povos indígenas, que sempre preservaram, que vivem a terra, mas infelizmente hoje a gente precisa ter ainda mais cuidado com a água, com o fogo.
#4 Demarcação das terras indígenas
Em todo este trabalho com o clima o que é mais importante, é essa questão da demarcação das terras, porque a demarcação das terras é prioritária a tudo isso. Sem terra não existe preservação, conservação, não existe o manejo para a questão do clima. Esses dois pilares: povos indígenas e direitos são essenciais, principalmente para a Amazônia, que eles chamam pulmão do mundo.
Os grandes empreendimentos e a ganância pelo desenvolvimento nos outros países aconteceu de uma forma muito rápida. E os povos das florestas, os povos indígenas, mesmo sem fazer estas ações, estão sofrendo agora com o que foi feito no passado. Um cara que nunca saiu da comunidade dele, que nunca foi lá fazer um prédio, fazer uma fábrica, hoje sofre a falta de água, o aquecimento na floresta e este aquecimento muda todo o ciclo de plantas e animais.
Isso é uma coisa preocupante, por isso que a gente vem trabalhando muito, fazendo essa incidência política, olhando para como os povos indígenas estão fazendo o manejo da floresta mesmo já sentindo esses efeitos das mudanças climáticas. Eu fico me perguntando, como pessoas que nunca ouviram falar de mudança climática (a gente tem muitos indígenas que nunca tiveram contato com o tema), como eles observam as alterações nos peixes, pássaros, água e dentro da dentro da floresta?
A gente sabe que dentro da floresta também há um aquecimento maior com a elevação da temperatura. Frutos que davam em certas épocas do ano hoje estão dando em outro tempo. Está tendo um descontrole, são percepções que a gente só ia ler em livros científicos, mas os povos indígenas têm muita sabedoria nisso.
#5 Expandir a discussão de mudanças climáticas
Estamos conversando com nossos parceiros para que o Conselho Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) vá para o nordeste do Brasil. A gente já foi uma vez e viu que há muita necessidade de tratar este tema com eles, porque eles já vivenciam esta questão de mudanças climáticas há muito tempo. Lá no povo Kiriri, onde a gente fez uma incidência através da Câmara Técnica de Mudança Climática, as cacicas reportaram para gente a T.P.M. (tensão pré menstrual) em mulheres mais novas por conta da quentura, do aquecimento. Eles estavam há sete anos sem chuva e elas falaram: ‘olha, a gente acha que é essa quentura que está fazendo isso com as mulheres aqui’. Isso não está escrito na saúde, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), em canto nenhum. Isso está na percepção daquelas mulheres.
Sinéia Wapichana hoje é uma das maiores referências no debate de mudanças climáticas no Brasil. Ela é gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que em 2021 completa 50 anos. A trajetória do CIR centra-se na luta pela garantia de direitos dos povos indígenas de Roraima. Um dos seus diferenciais está em pautar as mudanças climáticas em diferentes instâncias, inclusive nos Planos de Vida dos povos indígenas que ajuda a realizar. O conselho também promove a formação sobre o tema para os quase 300 Agentes Territoriais e Ambientais Indígenas (ATAIS) que possui. Atuando dentro das Terras Indígenas e munidos de tecnologias, estes agentes ajudam a alimentar o Sistema Geográfico de Informações do CIR e a monitorar as condições climáticas locais.
Sinéia Wapichana também é membro do Conselho Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC), uma instância independente de incidência indígena no tema. Após a saída de Joênia Wapichana para representar Roraima como deputada federal nas eleições de 2018, Sinéia passou coordenar a Câmara Técnica de Mudança Climática (CTMC). Composta por indígenas e representantes de órgãos públicos, a câmara funciona dentro do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGATI). Embora ambas as instâncias tenham muito a acrescentar na discussão global de mudanças climáticas, elas encontram-se desestruturadas pelos cortes de recursos da Funai e pela política de enfraquecimento dos órgãos ambientais realizadas pelo governo de Jair Bolsonaro.
*Os Planos de Vida ou Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) são ferramentas utilizadas pelos povos indígenas para planejarem seu modo de vida, o uso de recursos naturais e a gestão de ameaças e conflitos dentro de seus territórios. Faz parte da Política Nacional Indígena de Gestão Ambiental e Territorial (PNGATI).
Este texto foi publicado originalmente na revista Horizontes ao Sul.